sábado, 16 de novembro de 2024

Ainda Estava Ausente

 

1970

Durante a ditadura militar

Ainda Estava Ausente

 

Tinha 6 anos de idade e nem podia imaginar que só faltariam dois para minha mãe morrer. Ela era dona de casa, e meu pai, funcionário público. Ambos sem Ensino Superior. Classe média, mas média mesmo!

Não tínhamos telefone, por exemplo. Só fomos ter um através do Plano de Expansão da Telerj. Meu pai pediu e foi instalado quase no finalzinho do prazo de dois anos, quando eu já estava no 2º Grau.

Aos 6 anos amava Toddy, que era muito mais gostoso naquela embalagem bonita de vidro marrom. Se soubesse que ia acabar, tinha guardado uma de lembrança. O leite Vigor, e depois o CCPL, vinha numa garrafinha de vidro com um rótulo vermelho impresso direto no vidro. Minha mãe deixava as garrafas vazias na porta do apartamento e no dia seguinte pegava elas cheias de novo. O leite era gostoso também, mas começou a ficar esquisito quando passou a ser vendido em sacos de 1 litro no supermercado. Tinha três tipos diferentes, com letras impressas nos saquinhos para identificá-los. Parecia meio sujo, o saquinho. A gente passava uma água neles antes de botar na geladeira.

Aos 6 anos não conhecia a rua Delfim Moreira. Do Leblon, só conhecia o finalzinho, onde morava meu tio Oswaldo. Meus primos mais velhos do Leblon lamentavam que eu gostava do Benito de Paula e do sucesso dele, “Meu amigo Charlie Brown”. Conhecia o Charlie Brown da única coisa que eu lia do jornal, as tirinhas. Meus primos mais velhos ouviam MPB.

Me lembro muito também do hino da Seleção de 70: “Todos juntos vamos, / Pra frente Brasil, Brasil, / Salve a Seleção!”

Quando me lembro do hino da Seleção me lembro também da foto do Presidente Médici que colocaram na Escola Municipal Roma, na Praça do Lido, onde eu estudava. Morava em Copacabana e ia à praia lá perto, no Posto 2. Ainda não ia à praia em Ipanema, no Posto 9.

Todo mundo dizia que o Pelé era o melhor jogador, mas eu gostava mais do Jairzinho, e nem sabia que ele era do Botafogo.

Me lembro dessas coisas, mas com 6 anos sabia de muito pouco. Estava ausente da realidade de outras classes sociais. Estava ausente do meio universitário. Conhecia os sambas-enredo e assistia o Globo de Ouro. Acompanhava o programa e anotava a parada de sucessos num caderninho. Cantava tudo que tocava no rádio, mas Beatles e Paul MacCartney e os Wings, eram só nomes pra mim ainda, sem significado, sem história.

Criança. Ausente. Vivendo vidinha de criança. Que bom. 

Dez anos depois é que, adolescente, comecei a ler os livros escritos por quem já era jovem adulto quando eu ainda era criança. Imaginava tudo o que eu lia, e achava eles uns heróis. Tive sorte de ler primeiro “Os Carbonários”, cujas ações culminaram em “O que é isso, companheiro?”. Pensava que se tivesse a idade deles naquela época teria me unido a eles na luta.

Mas livro não é filme. Foto não é filme. Quando a gente vê no filme um trecho de noticiário da época com a polícia montada perseguindo manifestantes na Cidade, como se dizia, dá revolta. Quando você ouve no filme pessoas gritando enquanto a protagonista é conduzida de capuz nos corredores da delegacia, dá angústia. Dá medo. Poderia ter acontecido com alguém da minha família se meus primos mais velhos já fossem um pouco mais velhos.

Sempre acho que nasci 10 anos atrasada. Tão atrasada que, quando cheguei ao Posto 9, Gabeira já tinha passado por lá com sua sunguinha de tricô. Olhava em volta, mas nunca mais o vi por aquelas bandas. Só fui entrevistar meu herói prum trabalho de faculdade. Que emoção! Mas não sei onde foi parar a fita cassete com nossa entrevista...

Mas nas areias do Posto 9 ganhei camiseta de campanha para vereador pelo Partido Verde do Alfredo Sirkis, em quem sempre votei. Falecido agora. E o Gabeira, meus amigos acham que o perdeu a noção, mas eu ainda o entendo e penso como ele acerca de muitas coisas...

Também penso que se tivesse vivido naquela época poderia preferir me esquecer de tudo que fosse mais forte do que eu e me juntar ao Desbunde nas Dunas da Gal. Na verdade, acho bem mais provável, é bem mais o meu perfil. Mesmo dez anos atrasada, sempre fui mais da contracultura, yoga, meditação, incenso e comida natural do que do movimento estudantil.

Fico chocada com este passado que não vivi. Vendo apenas a cicatriz hoje, mal consigo imaginar como foi feio o machucado. Lamento que minha geração tenha crescido anestesiada na cegueira, mas quem sabe das sequelas de quem viu?

 

Novembro de 2024.

sábado, 7 de julho de 2018

FORA D'ÁGUA

Senti necessidade de ter um smartphone na primeira festa de aniversário de amiga de escola da minha filha. Pais tipo nada a ver comigo conversando entre si ou em seus smarts, e eu sem nenhum papel ou livro, meus eternos companheiros. Era um sábado. Na segunda o providenciei.
A vantagem do smart é que chama menos atenção. Caneta e papel são anacrônicos, enquanto o celular todo mundo usa. Chama bem menos atenção, pensam que você é normal. Além disso, é pá-pum. Escreveu e, se quiser, postou.
Daí pra frente nunca mais me apertei fora d'água: já o usei pra escrever pro meu blog em feira de anime, em banco, e hoje é a festa junina da escola da minha filha.
Ver gente até que é legal, mas tem uma hora que enjoa. Aí dá vontade de escrever.
Pena que o assunto acabou, mas a festa não. Por que é que só os pais da EDEM ou do Cap é que têm graça? E agora ainda tá tocando sertanejo pop. Dói até os ossos!

quarta-feira, 23 de maio de 2018

RE-COLHER

Eu quero a sorte de um amor tranquilo, com sabor de fruta madura. Que, de tão mordida, não se furta a ser saboreada como de costume. Cujo deleite está em saborear-se mais uma vez, como se fosse a primeira. Provar de novo o que se gosta, preenchendo o vazio da saudade. E, satisfeita, deixar estar, repousando do repasto familiar e acolhedor.

sábado, 29 de julho de 2017

TONS DO HIATO

Por vezes sinto o que uma amiga chamou de "hiato na vida".
É claro que não  tenho tantas atribulações como ela, mas também há muito que não acompanho o que vem passando no cinema. Pra falar a verdade, em lugar nenhum, só uma série ou outra de TV. De alguma forma parece que nos vimos fechadas no mundinho "casa e trabalho". O trabalho, através do qual nos realizamos, onde talvez tenhamos alguma válvula de escape, é nossa forma de comunicação com o restante do mundo. Mas a considero meio impessoal, talvez porque não seja ali que estão as pessoas mais queridas.
Dentre estas pessoas mais queridas estão certamente nossos filhos, que muitas das vezes não enxergam os pesos que carregamos, ainda que alguns venham caber também a eles, seja qual for seu tamanho, forma, ou origem. E isso dói, ter o que eu chamo de "trabalho invisível" e, por isso, nunca valorizado. E dói também não ter com quem compartilhar os bons momentos. Ser feliz sozinho é possível, sim, só que é uma sensação meio estranha.
Sendo filha única, logo me acostumei com tudo isso, ainda que não seja agradável. Também não me custou muito perceber que estamos invariavelmente sozinhos, desde o momento em que nascemos até a morte. Nunca ninguém vai saber exatamente como é  estar dentro de nós  mesmas. Não tem como.
E o que há nos "hiatos da vida"?: aquilo que costumamos de classificar com a frase "Mas isso não é vida!"; se não é vida, é o que? Não tenho a resposta pra essa pergunta, é claro. Mas não é a morte, propriamente dita.
Talvez esses "hiatos da vida", que parecem enormes vazios, virem uma obra de arte na visão de algum gênio criativo. Talvez virem apenas memórias doídas. Por serem tão sem graça, talvez tornem-se esquecimentos. Mas foram nossos processos, e talvez não tenhamos nos dado conta bem ainda de quanta saúde precisamos para ter passado por eles, nem das pessoas que nos tornamos através deles.
Somos, enfim, contínuos processos, obras abertas com seus altos e baixos, cores claras e escuras, em todos os tons, não só de cinza, se alternando o tempo todo. Ter essa oportunidade é que é lindo, mesmo que não pareça.

segunda-feira, 16 de maio de 2016

NOTHINGNESS

Breathing is what keeps you alive.
And can you grasp onto it?

You breathe in and it's over.
You breathe out and it's over.
All to start it all over again.

Contemplate, then, the nothingness of all things ephemeral
and their permanent evasiveness.

domingo, 15 de maio de 2016

YOUTUBERS

Ele é chamado de lindo, e tem tanto assunto quanto um ex-aluno meu de 7 anos metido a palhaço. Prova: faz beat-box de funk, sem qualquer sonoridade mais encorpada ou sutilezas de chiados. Assim ganha tempo e toma o nosso. Mas ninguém liga, vieram aqui pra isso.
Se auto-glorifica agradecendo à platéia lotada e enlouquecida para vê-lo. Agradece o carinho de todos e deve a eles seu sucesso: "Vocês são foda pra caralho."
O evento vira uma entrevista coletiva com perguntas da platéia. No palco tem também o melhor amigo, tão Youtuber quanto ele. Não param de se admirar com a quantidade de pessoas com os bonés da griffe deles. O boné escrito "PUTO" é plágio, o original é "CANALHA", dizem.
Se são comediantes tipo "stand-up", I'm sorry, não sabem improvisar.
Silêncio. Eu sentada numa cadeira cercada por crianças e adolescentes em pé em cima de outras cadeiras, nada vejo. Imagino que deve ser assim com o Stevie Wonder assistindo a um jogo da NBA: sabe de qual time foi cesta de acordo com o som da torcida.
"Minha maior felicidade é poder trazer uma risada pra uma pessoa que está mal.  Porque se ela está mal, ela não pode ficar no mal, ela tem que sair dessa, dar risada." Caridade profunda com crianças e adolescentes tristes e incompreendidos.
Daqui de baixo, na cadeira,  parece tudo muito calmo. Mas as atrações e a mestre de cerimônias pedem para que os fãs parem de jogar coisas (?) e que deem um passinho pra trás, pois aqueles posicionados junto à grade próxima ao palco estão ficando esmagados.
Momento Wando: jogaram um sutiã no palco, e ficamos sabendo que antes tinha sido um sapato.
Tão achando lindo pessoas querendo se matar pra tirar fotos com eles. E agradecem o carinho, pois eles trabalham para a felicidade dos fãs e não seriam nada sem eles.
Não mesmo.
Pra finalizar entoam  MC Bin Laden. Também não seriam nada sem ele.
Quem seriam?

Superação de Nama-Rupa

Transitar  confortavelmente por todos os portais: da Zona Sul do Rio à Índia, daí ao Norte da Inglaterra, daí à Korea Pop, daí a Westeros, daí a Middle-Earth, which is home.