1970
Durante a ditadura militar
Ainda Estava Ausente
Tinha 6 anos de idade e
nem podia imaginar que só faltariam dois para minha mãe morrer. Ela era dona de
casa, e meu pai, funcionário público. Ambos sem Ensino Superior. Classe média,
mas média mesmo!
Não tínhamos telefone,
por exemplo. Só fomos ter um através do Plano de Expansão da Telerj. Meu pai
pediu e foi instalado quase no finalzinho do prazo de dois anos, quando eu já
estava no 2º Grau.
Aos 6 anos amava Toddy, que era muito mais gostoso naquela embalagem bonita de vidro marrom. Se soubesse que ia acabar, tinha guardado uma de lembrança. O leite Vigor, e depois o CCPL, vinha numa garrafinha de vidro com um rótulo vermelho impresso direto no vidro. Minha mãe deixava as garrafas vazias na porta do apartamento e no dia seguinte pegava elas cheias de novo. O leite era gostoso também, mas começou a ficar esquisito quando passou a ser vendido em sacos de 1 litro no supermercado. Tinha três tipos diferentes, com letras impressas nos saquinhos para identificá-los. Parecia meio sujo, o saquinho. A gente passava uma água neles antes de botar na geladeira.
Aos 6 anos não conhecia a
rua Delfim Moreira. Do Leblon, só conhecia o finalzinho, onde morava meu tio
Oswaldo. Meus primos mais velhos do Leblon lamentavam que eu gostava do Benito
de Paula e do sucesso dele, “Meu amigo Charlie Brown”. Conhecia o Charlie Brown
da única coisa que eu lia do jornal, as tirinhas. Meus primos mais velhos
ouviam MPB.
Me lembro muito também do
hino da Seleção de 70: “Todos juntos vamos, / Pra frente Brasil, Brasil, / Salve
a Seleção!”
Quando me lembro do hino
da Seleção me lembro também da foto do Presidente Médici que colocaram na Escola
Municipal Roma, na Praça do Lido, onde eu estudava. Morava em Copacabana e ia à
praia lá perto, no Posto 2. Ainda não ia à praia em Ipanema, no Posto 9.
Todo mundo dizia que o
Pelé era o melhor jogador, mas eu gostava mais do Jairzinho, e nem sabia que
ele era do Botafogo.
Me lembro dessas coisas,
mas com 6 anos sabia de muito pouco. Estava ausente da realidade de
outras classes sociais. Estava ausente do meio universitário. Conhecia os
sambas-enredo e assistia o Globo de Ouro. Acompanhava o programa e anotava a parada
de sucessos num caderninho. Cantava tudo que tocava no rádio, mas Beatles e Paul
MacCartney e os Wings, eram só nomes pra mim ainda, sem significado, sem
história.
Criança. Ausente. Vivendo vidinha de criança. Que bom.
Dez anos depois é que,
adolescente, comecei a ler os livros escritos por quem já era jovem adulto
quando eu ainda era criança. Imaginava tudo o que eu lia, e achava eles uns
heróis. Tive sorte de ler primeiro “Os Carbonários”, cujas ações culminaram em
“O que é isso, companheiro?”. Pensava que se tivesse a idade deles naquela
época teria me unido a eles na luta.
Mas livro não é filme.
Foto não é filme. Quando a gente vê no filme um trecho de noticiário da época
com a polícia montada perseguindo manifestantes na Cidade, como se dizia, dá
revolta. Quando você ouve no filme pessoas gritando enquanto a protagonista é
conduzida de capuz nos corredores da delegacia, dá angústia. Dá medo. Poderia
ter acontecido com alguém da minha família se meus primos mais velhos já fossem
um pouco mais velhos.
Sempre acho que nasci 10 anos
atrasada. Tão atrasada que, quando cheguei ao Posto 9, Gabeira já tinha passado
por lá com sua sunguinha de tricô. Olhava em volta, mas nunca mais o vi por
aquelas bandas. Só fui entrevistar meu herói prum trabalho de faculdade. Que
emoção! Mas não sei onde foi parar a fita cassete com nossa entrevista...
Mas nas areias do Posto 9
ganhei camiseta de campanha para vereador pelo Partido Verde do Alfredo Sirkis, em quem sempre
votei. Falecido agora. E o Gabeira, meus amigos acham que o perdeu a noção, mas
eu ainda o entendo e penso como ele acerca de muitas coisas...
Também penso que se tivesse
vivido naquela época poderia preferir me esquecer de tudo que fosse mais forte
do que eu e me juntar ao Desbunde nas Dunas da Gal. Na verdade, acho bem mais provável,
é bem mais o meu perfil. Mesmo dez anos atrasada, sempre fui mais da contracultura,
yoga, meditação, incenso e comida natural do que do movimento estudantil.
Fico chocada com este
passado que não vivi. Vendo apenas a cicatriz hoje, mal consigo imaginar como foi
feio o machucado. Lamento que minha geração tenha crescido anestesiada na
cegueira, mas quem sabe das sequelas de quem viu?
Novembro de 2024.